Leia a seguir um trecho inédito de "A Maldição do Dinheiro", em que o economista Kenneth Rogoff defende o fim do papel-moeda no mundo
Kenneth Rogoff: "A metodologia que usamos para medir o crescimento do PIB é primitiva” (./)
São Paulo – Professor de economia na universidade Harvard e ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional, Kenneth Rogoff publicou em 2009 olivro Oito Séculos de Delírios Financeiros — Desta Vez É Diferente. A obra, uma análise histórica das crises financeiras escrita em parceria com Carmen Reinhart, rendeu acalorados debates por tratar da incapacidade dos investidores de enxergar bolhas.
Neste ano, Rogoff voltou à carga com outro livro que promete causar polêmica —The Curse of Cash (“A maldição do dinheiro”, ainda sem tradução no Brasil). No livro, ele prega o fim do papel-moeda nos países desenvolvidos — vem mais debate por aí. Veja o que ele diz neste trecho:
“Será que chegou o momento para os governos das economias mais ricas começarem a diminuir a impressão de dinheiro, exceto talvez notas de pequeno valor? Um grande número de questões econômicas, financeiras, filosóficas e até mesmo de ordem moral se ocultam nessa pergunta relativamente simples. Neste livro argumento que a resposta é ‘sim’. Defendo a diminuição da impressão de dinheiro.
Primeiro, porque essa medida desestimularia a evasão fiscal e o crime. Mesmo um impacto relativamente modesto nessas áreas justificaria livrar-se da maior parte do papel-moeda. Segundo, porque a diminuição do dinheiro impresso é provavelmente a abordagem mais simples e elegante para abrir caminho para que os bancos centrais possam praticar taxas de juro ‘com limite inferior a zero’, sem se preocupar com as amarras que os prendem hoje.
Como se isso não fosse suficiente, vale dizer que o dinheiro em espécie desempenha um papel crucial em uma ampla gama de atividades criminosas — incluindo tráfico de drogas, extorsão, chantagem, corrupção de funcionários públicos, tráfico humano e, certamente, lavagem de dinheiro. O fato de que as notas de maior valor são mais usadas em atividades ilegais do que as de valor menor há muito já faz parte das séries de televisão, dos filmes e da cultura popular. Quem elabora as leis e as políticas públicas, porém, está demorando para reconhecer essa realidade.
Vale também lembrar que o dinheiro em espécie desempenha um importante papel na indústria da imigração ilegal, que atormenta países como os Estados Unidos. Mas alguns políticos insistem na ideia de erguer enormes muros e cercas nas fronteiras. Eles parecem não entender que uma abordagem muito mais eficaz e humana seria dificultar a empregadores americanos o uso de papel-moeda para pagar empregados irregulares com o caixa dois. De um modo mais geral, o dinheiro em espécie é o que possibilita aos empregadores ludibriar as leis trabalhistas e evitar o pagamento das contribuições sociais à Previdência.
Obviamente que qualquer plano para reduzir drasticamente o uso do papel-moeda precisa oferecer contas de cartão de débito fortemente subsidiadas, contas básicas de cartão de débito para indivíduos de baixa renda e, talvez, smartphones básicos. Em vários países, incluindo Suécia e Dinamarca, isso já começou a ser feito. Muitos outros países estão examinando a possibilidade de tomar ações similares.
A proposta que defendo neste livro é deixar as pequenas notas de dinheiro em circulação por um longo período (talvez, indefinidamente), o que deveria resolver grande parte das preocupações com os pagamentos do dia a dia para a maioria das pessoas. Isso também serviria para aplacar as preocupações com relação à segurança, privacidade e emergências. Mas uma mudança demandaria uma transformação na maneira como temos agido.
Qualquer pessoa que pense que cartões de débito, pagamento via telefone celular e dinheiro virtual já substituem o papel-moeda está equivocada. A demanda por notas de dinheiro em papel em países adiantados vem aumentando regularmente há mais de duas décadas. Nos Estados Unidos, no final de 2015, 1,34 trilhão de dólares em moeda corrente estava em circulação fora dos bancos. Pode parecer surpreendente, mas a maior parte desse enorme volume de dinheiro está nas notas de maior denominação, o tipo de nota que a maioria de nós não tem na carteira ou na bolsa.
Quase 80% do suprimento de moeda corrente nos Estados Unidos é em notas de 100 dólares. Onde elas estão? Se fossem divididas de forma proporcional entre todos os americanos, cada família de quatro membros teria de ter 13 600 dólares em dinheiro vivo em casa. Isso sem contar as notas de menor valor.
Bancos centrais sem moeda?
O papel-moeda pode ser entendido como um título com taxa de juro zero. Ou, para ser mais exato, é um título ao portador anônimo sem taxa de juro. Não tem nome ou histórico e é valido para quem quer que o possua. Enquanto as pessoas tiverem a opção do papel-moeda, elas não vão querer aceitar nenhuma taxa de juro que seja significativamente mais baixa sobre nenhum tipo de título. A exceção, talvez, seja uma pequena taxa negativa, algo que justifique não ter de guardar e proteger o dinheiro em espécie. Ainda que pareça trivial, o limite muito inferior a zero vem basicamente paralisando a política monetária em todo o mundo desenvolvido pelos últimos oito anos.
Se fosse possível uma política de taxa de juro negativa — caso fosse feita toda a preparação financeira, institucional e legal —, os bancos centrais jamais ficariam sem balas no cartucho (ou seja, espaço para continuar cortando as taxas de juro). Desde 2008, quase todos os bancos centrais de países ricos desejaram adotar uma política de juros negativos. Alguns poucos, entre eles os de Dinamarca, Suécia, Suíça, zona do euro e Japão, estão testando os limites desse novo caminho, mas com restrições.
A ideia de que taxas de juro negativas podem, às vezes, ser uma boa política e que o papel-moeda atrapalha não é nova. No auge da Grande Depressão, notáveis economistas de todo o espectro, incluindo Irving Fisher, da Universidade Yale, e John Maynard Keynes, da Universidade de Cambridge, chegaram a um consenso. Se houvesse um meio para os governos pagarem um retorno negativo sobre o dinheiro, o mundo poderia sair da depressão.
O problema na época, tal como em muitos países atualmente, é que, com políticas de taxas de juro negativas, a política monetária ficaria presa em uma ‘armadilha de liquidez’ — a fuga para o papel-moeda. Fisher chegou a explorar a ideia de adotar uma taxa de juro negativa para o papel-moeda. Keynes elogiou a tentativa em seu livro A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, de 1936, mas prontamente chegou à conclusão de que isso seria absolutamente impraticável. Todo esse debate contribuiu para a sua famosa ideia de que o gasto do governo seria a chave para impulsionar as economias para fora da Grande Depressão.
Keynes, porém, poderia ter chegado a uma conclusão muito diferente em um mundo como o de hoje, onde a maior parte das transações já migrou para os meios eletrônicos, incluindo cartões de crédito e débito e telefones celulares. Não é impraticável o pagamento de juros negativos (ou positivos) em moeda eletrônica, tal como fazem os bancos. Ainda que esse entrave tenha sido resolvido, certamente, há outros obstáculos institucionais no caminho de uma política de taxa negativa de juro. Por exemplo: proibir o pré-pagamento excessivo de taxas e descartar a longa demora no pagamento de cheques.
Meu objetivo neste livro é levar essas contestações muito seriamente, buscando, onde for possível, pensar de que maneira poderíamos atenuá-las. Algumas pessoas preferem a conveniência do dinheiro em espécie — algo que tem alternativas. Outras valorizam o anonimato, questão muito mais complicada de se tratar.
Mas vale a pergunta: como a sociedade pode equilibrar o direito individual à privacidade e a necessidade de aplicar suas leis e regulamentos? Decidir onde fica essa linha — e de como implementá-la e aplicá-la — deveria ser talvez a única e mais crítica questão que qualquer força-tarefa futura deva considerar para acabar com o dinheiro em espécie.”
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